quarta-feira, 27 de outubro de 2010

A Saudade da Antiga Aurora

                                                                                   Para John, póstumamente
                              
Já faz algum tempo desde que recebi a ligação da Taiane anunciando sua morte. Sinceramente, até hoje, eu custo a acreditar nela. Custo a acreditar que me roubaram um amigo confidente, gente de beleza rara e cheia de sonhos. Tipo de gente que costuma mudar o mundo. Não lhe deram a oportunidade de mudar nada,meu amigo...

 A voz da Taiane tremia ao telefone. Eu, meio aturdido, tentei acalmá-la pois seu nervosismo misturado ao choro compulsivo não ajudava na compreensão de uma sílaba se quer das palavras atropeladas que brotavam de sua boca. Analisando rapidamente a situação, pude supor que a notícia, tão difícil de ser dita, dolorosamente proferida, seria algo relacionada a você. “Sofreu algum acidente, meu Deus?”, pensei de imediato. “Será que está na UTI, internado ou o quê? Quantas vezes o avisaram sobre o jeito inconseqüente que pilotava aquela moto!”.
Infelizmente, meus palpites eram otimistas demais.

Por conta da inquietude de minha amiga, me dispus a ir até a casa dela para que me contasse com calma o que lhe causava tamanho desespero e dor. No caminho de pedras, apertava meu passo, olhando sempre em frente , tentado não supor que o pior lhe havia acontecido.

domingo, 24 de outubro de 2010

Breve Saudade - ou - Nota Apoteótica 1

Naqueles dias de preocupação amena, quando você ainda estava descobrindo o sentido da vida. Naqueles dias soltos e de momentos esparçados e caminhadas leves. Nos beirais dos albuergues, na escada do teu apartamento, sentados na esquina bebendo cerveja e fumando cigarro. Naqueles dias, por mais que você tenha ido embora acreditando que não - desejando que não - soubemos de fato o significado de todas as palavras rugosas ingetadas por anos de literatura marginal e insólita. Registro aqui a nostalgia daqueles momentos. Enraizados em mim e testemunhado pelo mundo.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Tio Gilson e a Praia da Barra da Tijuca

Todo mundo tem um familiar problemático que só serve para trazer transtornos e dores de cabeça para o restante da família. Na minha , esta figura é representada pelo meu tio Gilson.

Tio Gilson é uma pessoa muito difícil de se  lidar. Tem suas convicções e não muda por nada, mesmo estando errado. Seu orgulho é imenso. Não sei, sinceramente, como cabe dentro de uma pessoa da estatura dele. Temos histórias variadas sobre seus feitos vergonhosos que já são contados a terceira geração. Irmãos, sobrinhos, minha avó, minhas priminhas mais novas... Não há quem olhe para o rosto do meu tio sem rancor algum. Mal ele já fez a todos.

Mas esse homem, quando eu ainda era muito jovem, mostrou-se possuidor um coração “de ouro”, como se costuma dizer...

Sempre fui fascinado pelo mar. O manto azul líquido desatinou um compasso mais acelerado no peito desde o primeiro olhar pela televisão na casa da minha avó Elizabete. Antes de conhecê-lo pessoalmente ,ficava praticando natação na cama, de baixo do cobertor que usava como meu mar particular. Tentava reproduzir – obviamente em vão – as sensações sentidas pelas idas e vindas das marés saturadas de sal.

Imaginava a temperatura da pele aumentando devido à exposição ao sol, as pessoas andando sem pressa marcando a areia da praia com seus pés tortos e pesados deformando artisticamente toda aquela beleza tipicamente carioca. Esses rituais de aproximação das sensações se repetiram diariamente até o dia do primeiro mergulho.

Devo ter deixado essa paixão transparecer em algum momento pois, em uma manhã bem quente de verão, fui convidado pelo meu Tio Gilson para acompanhá-lo a uma visita na praia da Barra da Tijuca. Eu era bem novo, devia ter um pouco mais de seis anos de idade. Morava em Comendador Soares e ir pra qualquer lugar do Rio de Janeiro levava uma quantidade de tempo considerável. Animei-me imensamente com o convite. Minha mãe não poderia saber e ele inventou uma desculpa qualquer para poder sair comigo. Do trajeto, só guardo na memória a entrada no trem praticamente vazio – naquela saudosa época, os meios de transporte público tinham certa qualidade. Para se ter uma idéia, a passagem do trem, por exemplo, custava R$ 00,50.

Ao entrar no mar, meus mergulhos imaginários mostraram-se eficientes. Sorria abundantemente entre um mergulho e outro enquanto meu tio,do meu lado ,acompanhava atentamente meus movimentos involuntários. O que ficou na memória foram as brincadeiras durante o mergulho, as múltiplas sensações que se misturavam ao mar colossal e o quiosque de um senhor muito simpático onde meu tio e eu ficamos olhando o mar por um tempo, ambos em silêncio. Executava, naquele momento, meu ritual de despedida.

Coincidentemente , vez ou outra, algum canal de televisão entrevista alguma celebridade na Praia da Barra. Juro que aquele quiosque, do senhor simpático que me ofereceu gentilmente uma água de coco, fica ao fundo da gravação.

É a única boa lembrança que guardo do meu tio.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

A Primeira Liberdade



Durante minha vida, aquela seria a primeira das muitas privações que teria da nossa tão querida e amada liberdade.  A primeira experiência de exclusão social e parcial privação de sentidos.  Este tipo de experiência nos impacta de forma tão intensa que nossa vida pode ser marcada com um antes e depois delas. Comigo, não foi diferente.

Estava deitado. A lembrança mais forte puxada pela memória abalada é que eu estava deitado.Uma escuridão total pairava sobre mim. Notei a força da ausência da luz porque, quando forcei um pouco os olhos afim de abri-los , a sensação era a mesma que se tinha ao mantê-los fechados.

Não me lembro de como fui parar naquela estranha cela. Minha mente fraquejava ao tentar resgatar um resquício que fosse, um fragmento qualquer do momento anterior ao cárcere. Instantes a mais de esforço revelaram alguns lances de imagens sem nenhuma ligação entre si: Primeiro, um milhão de vozes pareciam estarem presas no mesmo lugar, depois, as vozes foram diminuindo. Surgiu, neste ponto, a imagem em esboço de apenas duas pessoas. Um homem e uma mulher seguida de uma agitação alucinante que não distingui com perfeição.

Invasões Inomináveis.



Era seis horas da tarde...

O clima típico de verão já havia descortinado pelas ruas: Sol escaldante e tempestades repentinas. Ela me ligou, uma hora atrás, dizendo que estaria aqui em 30 minutos. Como era de se esperar, já se passou cerca de uma hora e nem sinto seu perfume primaveril: sempre se atrasa.


Minha maior preocupação vinha do fato da precisão certeira da previsão do tempo para o fim de tarde. Essa mesma previsão que sempre falhou quando me baseio em seus cálculos para partir supostamente em segurança para uma viagem. A garota do tempo disse que , no fim da noite, haveria uma pequena queda na temperatura. “ Pequena”, enfatizou ela.

Lancei meu olhar além de minhas janelas cobertas por uma fina persiana. Não acreditei na garoa finíssima que caía lá fora com muita intensidade. Meus olhos percorriam a sala. A cada minuto um novo objeto era alvo de minha inquietude acompanhado dos milhares de porquês por conta do seu atraso.